_O SEQUESTRO DE ÁLVARO TENENTE
De Arménio Dias Filho
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Dia 1.
Álvaro Tenente acordou às 6 da manhã. Preparou e tomou seu café. Fez a barba. Tomou banho. Se arrumou e saiu para o trabalho.
Exatamente como fazia todos os dias, desde que havia chegado, solitariamente, à cidade grande.
Porém, no caminho para o escritório, que ficava numa continuamente longa e ruidosa via, não muito próxima da que ele morava, algo um tanto quanto diferente do usual se dera.
A visão inesperada de uma mulher - mais especificamente de uma quiromante -, que ele nunca havia, até então, notado - pelo menos não naquele lugar, ou naquela hora -, chamara-lhe, sem qualquer razão conscientemente plausível, subitamente, a atenção.
Parada, o olhar fixo e misterioso à espera de qualquer desavisado transeunte que dela se aproximasse, quando Álvaro se dera conta, não restava àquela esquina estranhamente vazia, outra possível “vítima” senão ele.
- Era só o que faltava... – lembrava de ter consigo mesmo, a respeito daquele tolo - ainda que provável e inevitável - estorvo, instintivamente praguejado.
Dentre as várias táticas imagináveis que lhe surgiram velozmente à cabeça, no intuito de evitar o invasivo assédio daquela mística e arrebatadora figura, que mesmo muda, o indiretamente acossava, Álvaro optara, previsivelmente, pela mais simples: não encará-la frente a frente e seguir adiante, aparentando surpresa se abordado, e argumentando estar atrasado, caso ela insistisse em algo.
Até porque, nunca fora ele, um homem de crendices...
Mas, ele deve ter provavelmente sido a mais ingênua presa daquela tão alicientemente sibilina e hipnótica mulher, entre todas as que já havia feito ela, certamente, àquele dia - tanto que bastou que ela perscrutasse-no, profundamente, com seus lúgubres e sombrios olhos impermeáveis e repletos de um raro e igualmente esfíngico e trevoso magnetismo, para que sem qualquer dificuldade, conseguisse a mesma, num gesto fugazmente lépido, bloquear-lhe, sem exímias delongas, o trajeto.
A mão esquerda, que se erguera ostentando o relógio, acabara servindo muita mais como isca para a predadora, que como um premeditadamente bem-sucedido pretexto para fuga, já que foi justo aquela mão, que segundos depois se encontrava, como um livro aberto, totalmente nua aos olhos dela.
“Perco menos tempo deixando, que discutindo”, conformava-se entediadamente Álvaro, aceitando, enfim, sem grande pesar, a tão tímida e célere derrota.
No entanto, a mulher parecia não ter pressa...
Estudando minuciosamente todo aquele labiríntico cruzar de múltiplas linhas manuais, uma ou outra expressão tensa – que a Álvaro, obviamente não dizia nada -, ao rosto da pretensa pitonisa, volta e meia, brotava.
- Você teve uma doença séria quando pequeno. – ela então, após um certo tempo, proferira. – Uma doença respiratória... Não foi?
- Sim, eu tive bronquite asmática. – limitara-se a responder Álvaro, já isento da cerimoniosa obrigação de insidiar o crescente enfado que toda aquela tão inusitadamente patética situação lhe causava.
Até, que num dado momento, ainda sem abandonar aquela mão que ela mantinha cada vez mais firmemente presa às suas, a mulher erguera seus ineroxáveis e mediterrâneos olhos, para logo em seguida sentenciar:
- Você será seqüestrado.
Instantaneamente, Álvaro empalidecera.
O que era um simples contratempo a caminho do trabalho começava a dar indícios de se ter repentinamente transformado, numa torva brincadeira de mau gosto.
- Sequestrado? – um tanto trêmulo, Álvaro, a hesitantemente indagara. - Como assim?
- É o que eu vejo escrito aqui.
Não, não podia aquela mulher estar dizendo a verdade; apelava, então, Álvaro, intimimamente à sua assolada razão; ela sequer o conhecia; não podia ele dar crédito a qualquer solerte feiticeira, que por ventura consigo cruzasse, e sobre si, fantasistas nescidades inventasse...
Afinal, era só uma quiromante; uma quiromante de rua em busca de dinheiro fácil a quem aprazia, sobretudo, impressionar...
- Mas por que? – ele, no entanto, incessantemente, atarantava-se - era, incrível como aquele ridículo ímpeto de favor, fazia-se mais forte que ele – Mas por quem?
- Por alguém que você conhece... – a mulher, lançando-lhe um vítreo olhar cruamente frio, sinistramente replicara. - Alguém que você conhece muito bem.
Para uma brincadeira, aquilo já tinha, sem dúvida alguma ido, longe demais. Puxara de volta, com uma certa aspereza, aquela mão das dela, e voltara ao seu caminho sem, no entanto, conseguir, naturalmente tirar os olhos, dos daquela tão soturnamente estuosa e fádica mulher, a quem não pagara, tampouco outra coisa em troca dera, por aquela tão nefanda e atordoante informação.
Sim, surpreendera-lhe - e muito -, em meio a tudo aquilo, o fato de não ter sido cobrado pelo serviço, já que era disso que se tratava o ofício da andarilha cigana.
Mas a mulher nada mais fazia, senão encara-lo demoradamente enquanto ele se afastava, sem sair daquela personagem que tão aflita se mostrava, com o funesto presságio que ela própria havia acabado de vaticinar.
Estaria ele realmente correndo algum tipo de perigo e toda aquela dantesca cena não passava, na verdade, de um nítido alerta cósmico para a sua reles pessoa – um alerta, tão horrendamente assustador que chegara a afetar até mesmo a sua eventual e desconhecida mensageira?
Não, não... Não haveria de ser nada...
- Que bela maneira de começar o dia! – atravessando a rua, Álvaro, ainda pensara.
Contudo, outra coisa esquisita acontecera – mais especificamente enquanto mantinha-se Álvaro preso às suas mais que aterradoramente incoerentes reflexões.
Um homem o olhava.
Um homem de aparência um tanto suspeita, a quem ele definitivamente não conhecia, inexplicavelmente parado ao outro lado da rua, assistia-o, atentamente. Na verdade, o homem usava óculos escuros, e portanto, o “assistia-o atentamente” era contestável – talvez um exagero amedrontado de quem ainda temia, de certo modo, as grandes cidades, ou mesmo um fruto da maligna sugestão, pelo mau presságio da quiromante, em sua cabeça, instintivamente provocada.
- Não há o que temer... – Álvaro, a si mesmo, reiteradamente repetia, ao passo que seguia, numa fictícia e calculada calma, aquele seu tão habitualmente cotidiano e imutável percurso.
No entanto, outro tipo estranho aparecera.
Também de óculos escuros, caminhando decididamente e sem se ater aparentemente a nada, o homem – de estatura singularmente elevada -, vinha, indubitavelmente na sua direção. Álvaro sentiu-se cercado. E se o primeiro homem houvesse atravessado a rua? Não, não teria ele opção. Por um segundo, ainda lhe passara à cabeça virar-se para conferir, mas, raciocinando rápido, concluíra que se um deles tivesse mais chance de agir contra si, faria isto, certamente, de surpresa, e obviamente seria o que agora já se encontrava, de si, a uns 4 metros de distância. A melhor fuga seria, com toda a certeza voltar, ao sólito caminho por onde comumente viera. Para isto, diminuíu consideravelmente o próprio passo - a tática, por pior que pudesse parecer, era deixar seu algoz aproximar-se o máximo possível... E quando o mesmo, enfim, por ele lentamente passara, Álvaro arremessara-lhe, violentamente e sem titubear, a grossa pasta de trabalho em direção ao rosto, acertando-o e retardando-o, enquanto disparava na direção oposta, ao passo que o homem, petrificado, não atrás de si correra. A quiromante – a fatídica prenunciadora de tudo aquilo -, encontrava-se ainda parada ao mesmo ponto; o primeiro homem – o que o atentamente assitia à calçada oposta -, também não se encontrava, para o seu momentâneo júbilo, em seu encalço -, embora nem mais soubesse Álvaro se permanecia o mesmo ao quadro, como há 5 segundos atrás, pois olhar para trás, ou para o lado, não fazia mais parte, àquela altura dos fatos, de seu imprudente plano.
Álvaro precisava correr. Correr muito, e desesperadamente, para chegar logo em seu prédio em segurança.
E assim o fez.
Passando pela portaria, suado, arfante, o terno um pouco torto e inevitavelmente amarfanhado, os cabelos revoltos e sem a costumeira pasta de trabalho, Álvaro acenou monocordiamente ao porteiro, fingindo naturalidade. Entrou no elevador e permaneceu olhando fixamente para frente, prendendo dificultosamente a respiração cansada, ciente de que a câmera de segurança do teto o observava. “É possível controlar todo o itinerário de um indivíduo”, arrematou.
Saltou em seu andar, entrou correndo no apartamento e bateu exauridamente a porta, descansando, conseqüentemente, seu fatigado corpo nela.
Estava, felizmente livre, do imane mundo externo.
O alívio imediato, porém, foi imediatamente assaltado pela idéia de que, se realmente alguém estivesse planejando seu seqüestro e o circuito de segurança do prédio fosse parte relevante em tudo aquilo, qualquer pessoa poderia invadir-lhe o lar - principalmente na sua ausência.
E, com o barulho desmedido que fez ao fechar a porta, se alguém estivesse, àquela hora, devidamente em seu apartamento escondido, o mesmo já estaria inteiramente a par de sua presença.
Uma onda de pavor que trespassava-lhe vagarosamente a medula, fora se pouco a pouco alastrando por todos os seus outros gélidos e paralisados membros.
Precisava averiguar se estava realmente só.
À esquerda da entrada, havia a cozinha. Divisando uma distância hipoteticamente segura, Álvaro deu um passo, que pôde prontamente colocar, como ele premeditara, toda ela em seu largo campo de visão.
Nada, nem ninguém, ali.
A “arma” mais próxima que Álvaro poderia lançar mão àquele momento, era um jarro de vidro grande e pesado, que nunca abrigara plantas de qualquer tipo, e servira, até então, como mero objeto de decoração, logo à entrada da sala. “Armado”, Álvaro invadiu a mesma, preocupando-se em fazer o mínimo de ruído possível. Como na cozinha, para a sua alegria aflita, nenhuma alma viva.
Faltava apenas o banheiro e seu próprio quarto para terminar, com sucesso, aquela temerária “campanha de reconquista”.
De longe mesmo, pudera Álvaro constatar que ambas as portas estavam abertas - exatamente conforme ele havia deixado. O que no fundo não significava nada – pois poderia ser aquilo muito bem parte da intrincada e bem urdida estratégia inimiga, para, quando ele menos esperasse, indefensavelmente, atacá-lo. Encostado à parede que fazia frente ao banheiro, agarrado ao jarro, Álvaro foi caminhando de lado até ter uma vista completa do suspeito cômodo.
Vazio.
Mais um passo para a direita, e estava no quarto.
Ninguém também por lá.
Seu território estava, sem sombra de dúvida, tranqüilo. Qualquer movimento agora, teria de vir, necessariamente de fora.
Retornou o jarro a seu posto.
E pensara, mais uma vez, que tudo aquilo não passava de um tolo exagero de sua parte...
- Quem haveria de querer seqüestrar um zé-ninguém como eu... – ele, de si mesmo, ria.
Entretanto, mal vira-se prestes a vislumbrar um ínfimo instante de relativa tranqüilidade que fosse em meio a todo aquele pandemônio de sentidos no qual adernado estava, sentira Álvaro um brusco choque atingi-lo à altura do peito. O choque, contínuo, emitia um som abafado e parecia estranhamente vir de dentro dele mesmo, só parando alguns segundos depois, quando Álvaro, enfim, enfiou a mão no bolso do terno, e jogou no sofá seu velho aparelho celular que irritantemente vibrava e tocava ao mesmo tempo.
O celular tocara muitas vezes.
Insistente e ininterruptamente.
Até que parou.
Encarando-o de longe, mais uma vez Álvaro quase sorrira ao constatar, que havia, sim, quase morrido do coração, por ter simplesmente recebido um mero telefonema.
“Será que é pra tanto?”, ele, outra vez, questionava-se.
O celular, contudo, voltara a tocar.
Chamada não identificada.
Álvaro, logicamente, não atendera.
Algumas horas mais tarde, depois de várias chamadas não atendidas e de inúmeras mensagens de texto não respondidas; quando um provável atraso no escritório começava a se inevitavelmente configurar como uma inexplicada falta, foi a vez do telefone fixo, altissonantemente tocar.
A secretária eletrônica atendera.
“Você ligou para a casa de Álvaro Tenente. No momento, não posso atender. Após o sinal, deixe sua mensagem que retornarei assim que puder.”
BIIIIIIIIIIIIIIP
- Álvaro? Álvaro? Aqui é o Sílvio, do escritório. Eu to ligando pro seu celular, mas não to conseguindo te encontrar. O pessoal aqui tá preocupado, você não apareceu, não avisou nada... Quando ouvir essa mensagem, entra em contato com alguém daqui, por favor, ta bom? Abraço.
Todavia, como se era de esperar, nem Sílvio, nem o escritório, receberam nenhum telefonema ou informação sobre o desconhecido paradeiro de Álvaro Tenente ao longo de todo aquele dia.
Dia 2.
Desde que chegara à cidade grande, Álvaro percebera que vizinhos, apesar de geograficamente mais próximos que no interior, não poderiam pessoalmente viver mais distantes.
Tanto que ele próprio, nunca soubera o nome de nenhum dos seus.
Cada andar de seu prédio continha quatro apartamentos. Álvaro morava no 501. No 502, uma mulher, entre 30 e 40 anos presumíveis, sozinha, não feia, mas, tampouco bonita, séria, com um certo quê de divorciada. O 503 abrigava um casal de idosos, que apesar de simpáticos, pouco de casa saíam. E no 504, um tipo um tanto quanto enigmático, que, felizmente, Álvaro nunca conhecera muito bem.
Vistas do corredor, as portas social e de serviço ficavam lado a lado. De dentro, eram divididas por uma parede que separava o hall de entrada da cozinha. Mantendo-se entre a sala e a cozinha, Álvaro estaria sempre ao alcance de água e comida, além de objetos da cozinha que porventura pudessem ser por si usados com mais eficácia que o jarro de vidro. O modesto banheiro de empregada, que sustentava apenas uma privada, um chuveiro e uma pia, ficava mais próximo do corredor, elevador e vão central do edifício. Lá, Álvaro poderia suprir suas necessidades sem perder os difusos sons da diversificada movimentação predial.
Estaria sempre a postos contra quem quer que tentasse entrar.
- A não ser que entrasse o invasor pela janela do quarto... – ele, por um segundo, angustiadamente, temera.
Mas, sendo um apartamento no quinto andar, levar em conta tal possibilidade, era algo que, sim, beirava a insânia.
Álvaro não dormira a madrugada inteira. Em determinada hora, pensou em tomar um banho, mas se estivesse de alguma maneira tendo seus movimentos observados, seria num momento de descuido como aquele que o ataque seguramente ocorreria. Seu celular continuara tocando até finalmente descarregar a bateria, e a secretária eletrônica acusava nada mais nada menos que 19 mensagens gravadas.
E fora ali, sozinho, durante aquele longo e aflitivo período, que Álvaro percebera, detalhadamente alguns padrões - um tanto quanto relevantes, era verdade - , do rotineiro balé dos vizinhos. A mulher do 502 gostava de usar saltos e trabalhava no horário comercial. Os idosos, como ele já de antemão desconfiava, assistiam, o dia inteiro aos mais discrepantes e variados programas de televisão. E o morador do 504 – o enigmático, como ele mesmo prefacialmente classificara - saíra àquele dia às 9 da noite e só retornara às 4 da manhã.
“Ou trabalha na noite, ou é algum profissional free lancer, não tendo um horário definido”, Álvaro devaneava.
A moradora do 502 e o casal do 503 faziam assinatura de algum jornal, que era posto embaixo de seus capachos às 4:30.
Nenhum parecia acordar cedo.
De pé, à base de muito café, o dia ia transcorrendo para Álvaro conseqüentemente sob controle. Uma vigésima ligação lotara as mensagens da secretária.
- Álvaro? Teu pai, atende aí! Atende essa porra, caralho! Olha só, eu recebi um telefonema lá do negócio onde você trabalha, dizendo que você não foi. O que é que houve? Onde é que você se meteu?? Vê se não vai me arrumar problema agora, hein?! Olha lá! Eu to esperando você me retornar e me explicar que palhaçada é essa que tu tá aprontando, senão eu chamo a polícia!
Curioso com o furente e autoritário tom daquela voz, que volta e meia atormentara a sua adolescência – não só quando Álvaro fazia alguma besteira, mas, sobretudo, porque achava por bem aquele pai dirigir-se àquele filho sempre de modo ríspido -, soava agora como um inútil e longínquo grito de desespero, que perto dos reais problemas que momentaneamente enfrentava Álvaro, nem chegava a interromper a ação que o motivava - que era a de simplesmente ir à geladeira pegar uma maçã, no frágil intuito de enganar, temporariamente a fome.
Geladeira aberta, maçã na mão, enumerando as coisas que se lhe ostentavam às prateleiras, Álvaro calculou o quanto de comida seria necessária para supri-lo àquela hora. Preferiu, portanto, deixar a maçã para mais tarde. A atividade que voltava a se fazer ao corredor, parecia, evidentemente, dada a gravidade daquela tão riscosa situação, para si, muito mais importante. Eram 15:47. A engrenagem do elevador freou, e a porta se abriu, justamente, ao seu andar.
Passos.
Quem seria?
Um visitante, sem dúvida.
A mulher do 502 não estava em casa. O casal do 503 poderia ter filhos ou até mesmo netos. E o do 504 devia, como todos, ter amigos - embora não parecesse gostar muito de gente.
Mas os passos, por sua vez, pareciam destinar-se ao 501.
E pareciam ter parado cuidadosamente à sua porta, como se não quisessem chamar de modo algum a atenção. Ninguém bateu, ninguém tocou a campainha, tampouco havia interfonado antes. E agora, estava ali, parado. Por um momento, ouvira o visitante mexer às roupas. Estaria ele – ou ela, nenhuma possibilidade podia ser descartada -, procurando em seus bolsos alguma chave mestra, ou mesmo algum tipo de ferramenta útil para abrir portas? Ou talvez arrumando o que quer que houvesse trazido, caso estivesse disfarçado de entregador, enquanto escondia atrás da suposta encomenda uma arma?
Sem nenhum movimento brusco, Álvaro abriu lentamente a gaveta dos talheres, e com a ponta dos dedos pegou uma faca de cozinha.
Passos novamente, agora se afastando.
Campainha do outro lado. 504. A porta se abriu, um diálogo amigável teve o seu ínicio, até que adentraram ao apartamento enquanto a porta se fechava, encerrando, de vez, seu limitado acesso ao conteúdo da conversa. Alívio. A faca de cozinha aparentava ser uma boa idéia – afinal, era melhor conserva-la à mão que presa na barulhenta gaveta dos talheres.
A visita vizinha deixou a área às 17:24.
Após aquilo, nada de novo no front.
Dia 3.
Havia uma faxineira, que trabalhava provavelmente no 503, que Álvaro só descobrira então – gerando, em si, como se era de esperar, um leve susto - pela manhã. Para evitar esperdiçados sobressaltos do tipo, achou Álvaro por bem anotar todos os itinerários de seus vizinhos, para poder assim identificar o que fugisse aos padrões estabelecidos, e mais ainda para ter consigo um verídico registro de confiança anotado, pois não sabia quanto tempo sua mente permaneceria naquele ritmo em estado de alerta. Sentado à mesa de jantar, com a faca ao lado, anotou os números dos apartamentos em uma folha de papel, correlacionando ao lado os habituais horários de cada um.
Mas algo que ele realmente não esperava acontecera.
O relógio marcava 13:20, quando seu interfone tocou. Álvaro imediatamente se agarrou à faca e com a respiração quase suspensa, esperou. O interfone insistia. Insistia muito. Quase que como na certeza de que estava ele em casa.
Até que parou.
Álvaro mais uma vez se pôs a pensar em tudo o que havia decorrido nos últimos dias, em mais uma vã tentativa de levantar suspeitos, mas não conseguia, como sempre, ir muito além do porteiro - que dependendo do ponto de vista considerado, poderia ser, sim, alguém que ele conhecia “muito bem”, apesar de não saber sequer o seu nome.
E eis que o elevador aporta novamente no quinto andar, e sapatos se dirigem sem nenhuma dúvida para o 501.
Toque de campainha.
Álvaro, uma pilha de nervos, com a faca em punho, se postou aterradamente em frente à porta, à alguma distância que não denunciasse a sua presença, e ali ficou. Tesamente preparado para avançar, assim que o criminoso da fechadura se de vez livrasse.
Mas o criminoso fingia esperar ser atendido convencionalmente, como se não tivesse nada prologalmente preparado. Ele esperou, tocou a campainha de novo, e continuou a esperar. Álvaro ouviu os movimentos das suas vestes, como se ele manuseasse ferramentas aos bolsos, seguidos de sons eletrônicos, como um código de acesso. Imediatamente, seu telefone fixo passou a tocar, simultaneamente às últimas esperanças da campainha. Álvaro, que neste momento percebia suas pernas oscilantes, enquanto empapava toda a roupa de suor, começou a se dar conta de que a faca, por maior que fosse, era um instrumento de curta distância. Teria que estar muito perto de seu algoz para brandir um ataque de efeito, já que estaria também o adversário armado, dificultando, obviamente, todo o resto.
Mas era naquele momento, tudo o que tinha.
O telefone e a campainha cessaram. Passos percorreram o caminho do elevador outra vez. As engrenagens cantaram que ele estava indo embora. Mas Álvaro ainda permaneceu muito tempo à mesma posição, caso tudo não passasse de um blefe. Após certificar-se de que o perigo não o mais ali rondava, dirigiu-se silenciosamente à área de serviço, onde, de posse de uma vassoura da qual separara apenas o cabo, e de um rolo de fita isolante, transformara a sua humilde faca numa lança.
Uma de suas janelas dava para outros prédios. Nenhum muito próximo, era verdade. Mas lhe ocorreu por um instante que o pormenorizado monitoramento de suas atividades poderia estar sendo feito por um deles. Daí talvez viesse a certeza do visitante da hora do almoço – hora em que Álvaro se achava, ordinariamente, em casa. Pensou em fechar as cortinas, porém, tal atitude denunciaria ao observador que já estava ele a par de toda a operação. Melhor seria simplesmente desaparecer do apartamento, para todos os efeitos. Munido de seu equipamento de longo alcance, não lhe restava outra alternativa senão locomover-se, a partir daquela hora, engatinhando ou rastejando ao chão, objetivando nunca alçar-se acima do periculoso limite da base da janela. Dali em diante, viveria na altura da tábua colada com fita adesiva na parede interna do apartamento, para tapar o buraco feito para o aparelho de ar condicionado – nunca instalado.
E foi justamente ali, entre a parede com a tábua e a lateral do sofá, que elegera Álvaro o seu posto. Estava fora do campo de visão de quem invadisse pela porta de entrada; e se entrassem pela janela do quarto, ao entrar na sala não teriam também como vê-lo. Havia ainda a janela da sala - Álvaro, por sua vez, em pouco tempo notara -, mas, caso escolhesse o invasor entrar também por ali, com ele se ia à mesma hora deparar – com ele e com sua afiada lança, pronta a perfurar quem quer que consigo se eventualmente atracasse. A lista de horários dos vizinhos, ficava embaixo do sofá, onde estaria à mão a qualquer momento que um barulho, ao andar, claramente ecoasse.
Estava pronto para qualquer combate.
Dia 5. Ou 4.
Álvaro não dormia há 3 ou 4 noites. De vez em quando, cochilava por alguns minutos meio que sem querer mas, ao menor som provocado, voltava a si muito mais desperto e próvido que antes. Em seu canto, o dia começara, para o seu intermitente alívio, sem grandes novidades.
Mas às 13:14, o interfone voltou a tocar.
Imediatamente Álvaro pegou sua arma, foi em direção à cozinha e apontou-a ao interfone, como se ele pudesse eficientemente calar o mesmo, com o escomunal peso daquela tão baldia e infrutífera ameaça.
O interfone parou.
Álvaro suspirara por um segundo - como se um mero suspiro lhe parecesse um prêmio.
Porém, um ruído bastante familiar interrompera aquele breve instante de paz.
Eram as engrenagens do elevador.
Como Álvaro temia, o elevador estacionou ao quinto andar. Quatro pés caminhavam, conversando rumo ao 501. Encostado na parede que divisava o término do hall e o começo da sala, Álvaro conseguia perfeitamente ouvi-los por estar perto da porta. Percebeu também, que naquela posição, quando os mesmos, enfim, entrassem não teriam uma boa visão sua até que fosse tarde demais. As duas vozes soavam-lhe conhecidas. A campainha grita. Não dava para captar com exatidão o que diziam, mas pôde ouvir seu nome citado mais de uma vez. A campainha ressona novamente. Uma voz das vozes se sobressai, agora alta:
“Álvaro?”
Provavelmente era o mesmo homem que tinha certeza de sua presença.
“É o Sílvio. Você tá aí?”
Sílvio!!! Álvaro não diria que conhece o Sílvio “muito” bem, mas o conhecia, sem dúvida, mais que superficialmente. Também não poderia imaginar mais ninguém de seu seleto grupo de amigos que pudesse arquitetar algo contra ele. Um colega de trabalho é o mais humanamente provável. Sílvio, era com certeza a pessoa mais próxima de Álvaro no escritório, e por muito tempo em um escritório conhecem-se idiossincrasias uns dos outros, que podem ser naturalmente interpretadas por “conhecer muito bem”. Sílvio fazia definitivamente parte do plano – mais: era ele certamente o elo que ligava os mentores a Álvaro devido ao fato de trabalharem juntos. Ele era a pessoa que Álvaro conhecia “muito bem”.
Desvendando, afinal, o prólogo de todo aquele tão intrincado mistério, Álvaro teria se sentido até mesmo feliz, não fossem as insistentes batidas na porta, mais a campainha, mais o seu nome evocado em voz alta, em meio à uma ininteligível conversa, que ele acreditara, em dado momento, ouvir entre os comparsas.
De repente, entrara em cena um som metálico.
Penduricalhos de metal chocando-se sonorosamente uns aos outros.
Seriam chaves?
Um dos penduricalhos foi introduzido na fechadura, enquanto os outros faziam somente côro. Um imenso molho de chaves, era o que Álvaro presumira. Acompanhado pelo porteiro, que por alguma razão qualquer, tinha uma cópia da chave de sua casa - ou mesmo uma chave mestra, pois a porta respondeu começando a se destrancar -, Sílvio estaria, em poucos segundos diante de si. Álvaro precisava se esconder. Ou devia matá-los em legítima defesa? Sem muito raciocinar, Álvaro disparara, num impulso, em direção à janela, jogando sua arma pelo caminho em baixo do sofá. O destrancar da porta já ia para a segunda volta. Álvaro pôs seu corpo para fora do apartamento, e segurou-se bravamente ao parapeito da janela. Chegou a ver a porta se abrindo quando substituiu o parapeito da janela pela parte externa do buraco do ar condicionado.
Eles entraram.
Álvaro estava pendurado pelos dedos num pequeno buraco de formato quadrado na lisa parede externa do quinto andar de seu prédio. Pelo menos não fora visto; era o que o reconfortava. Sílvio e o porteiro devassavam o recinto, sempre chamando seu nome. O porteiro procurou na cozinha e na área de serviço. Sérgio, no banheiro e no quarto. Do lado de fora, Álvaro só conseguia ouvir seu nome sendo várias e várias vezes falado. Sílvio e o porteiro se reencontraram na sala, onde Sérgio indagou novamente o mesmo sobre quando fora Álvaro, ao prédio, visto pela última vez. O porteiro explicava que o tinha visto entrar, mas não havia o visto sair – da mesma forma que o porteiro da noite. Sem entender como podia ter aquilo acontecido, Sílvio pedira então para ver os registros do circuito interno de segurança, para ver se flagrava alguma imagem de Álvaro saíndo ou entrando no prédio.
- Alguma coisa muito séria deve ter acontecido. – Sílvio volta e meia conjecturava.
Antes de saírem do apartamento, no entanto, o porteiro, notando a janela escancarada da sala, achou por bem fechá-la, pois já que Álvaro não se encontrava e não se sabia quando retornaria, poderia em caso de chuva ser a mesma alagada, danificando, não só o chão de madeira, como também algum aparelho eletrônico.
Pendurado pelos dedos, Álvaro viu desesperadamente sua janela sendo fechada, e ele sendo, conseqüentemente trancado, do lado de fora do edifício.
As mãos começavam já a adormecer, exaustas de estarem aguentando todo o peso de seu corpo.
A tentativa de descansar uma mão e permancer segurando-se só com a outra, mostrou-se logo, como se era de esperar, não muito bem sucedida.
Afinal, era muito peso.
A situação – talvez a mais absurda, por si, até então vivida - surrealmente prolongava-se. Em mais alguns minutos, suas forças extenuar-se-iam.
Algo precisava ser feito, caso não quisesse ele, resignado, encarar, em alguns instantes, a morte.
Apesar dos braços imperiosamente combalidos, e da incredulidade que o continuamente assolava, a cada vez que se dava conta de onde e como estava, Álvaro reuniu num urro, as últimas forças em si restantes para erguer o corpo o máximo que podia. Conseguindo, um violento soco na tábua – que sangrara-lhe a mão direita -, seguiu-se, zunindo-a para dentro do apartamento, onde Álavro agarrou com o braço intruso a parede interna, colocando-se, rapidamente numa posição um tanto mais factível e favorável para agüentar o próprio peso.
Passou o outro braço para dentro do buraco.
Conseguiu erguer-se mais, empurrando o prédio com as pernas e puxando o apartamento com os braços.
Passara a cabeça.
Depois o tronco.
Por fim as pernas.
Estava de novo em casa.
Rastejando pelo chão, onde involuntariamente colhendo um merecido descanso, comemorava ainda a sorte de já terem os êmulos saído, aparentemente sem ouvir o estrondoso retumbar da tábua quebrando, Álvaro permaneceu estendido no chão por muito tempo, com os músculos do corpo incrivelmente enfraquecidos e o ritmo cardíaco incoercivelmente alucinado. A adrenalina baixava, o coração se desacelerava e uma prostração gradativa ia dominando tudo o que se achava ainda vivente em si. Ele sabia que se continuasse ali, iria necessariamente dormir.
Por isto, com muito esforço, levantou-se.
E foi à cozinha fazer mais um silencioso café.
Dia ?
No silêncio da madrugada, em seu posto no canto da sala, Álvaro lutava determinadamente contra o sono. Os olhos pesados, a respiração sôfrega, volta e meia despertava de si mesmo com a cabeça pendendo, lassamente em queda. Já havia tomado todos os estimulantes existentes na casa, mas o acúmulo daquelas três ou quatro estafantes noites passadas, somadas à aventura daquela tarde, foram a sentença de morte para a empedernida e implacável energia de Álvaro, que agora mal conseguia se mover. Sabia que não devia ceder, mas o sono o impiamente atacava, independente de sua vontade. A persistência em não dormir e a certeza de não estar dormindo já eram o próprio sonho num sono profundo.
Álvaro, enfim, rendera-se.
Deitado no chão, estava, deveras, entregue à própria sorte.
Não houve barulho de elevador, nem telefone, interfone ou campainha - muito menos vozes. Entretanto, pouco tempo depois de Álvaro inelutavelmente adormecer, a porta do apartamento foi mais uma vez destrancada, porém agora com muito mais acuidade e muito menos barulho – como se cada movimento feito, tivesse como único objetivo, não perturbar o profundo sono de Álvaro. Quatro pés adentraram cautelosamente o hall, fecharam a porta e tiraram os sapatos, ficando somente de meias. Cada um vestia um capuz, deixando somente os olhos à mostra. Caminharam em direção a Álvaro - um ficando próximo de seus pés, o outro de sua cabeça. O que se achava próximo à cabeça, pegou um lenço e um frasco, cujo líquido fora prontamente derramado ao lenço. Ao mesmo tempo, o outro homem apressou-se em imobilizar as pernas de Álvaro, ao passo que o primeiro segurou um de seus braços, prendendo em seguida o braço restante pressionando, contra ele, o joelho. Com a mão livre, lançou o lenço encharcado contra o nariz e a boca de Álvaro, que com o susto, já acordara lutando, porém totalmente dominado. Álvaro ainda conseguiu abrir a própria boca, e morder não só o lenço, mas também alguns dedos do agressor, fazendo com que este, por um segundo se afastasse. Surpreso com o golpe, este mesmo agressor cedeu um pouco a pressão que fazia até então com o joelho, permitindo que Álvaro pudesse livrar uma das mãos, que, todavia, foi logo presa pela mão ferida do algoz, fazendo com que Álvaro continuasse, deles, cativo – mesmo que naquela posição, não tivessem os atacantes as mãos livres para inebriá-lo com o lenço, que agora se encontrava ao chão. Álvaro se agitava o máximo que podia – seu intuito era dar o máximo de trabalho possível àqueles seqüestradores; num delírio, pensara que se conseguisse livrar deles a outra mão, poderia alcançar, com sucesso, sua arma embaixo do sofá. O criminoso refez o esquema, ajoelhando novamente sobre o braço de Álvaro, e pegando o lenço. Nesta movimentação, Álvaro conseguiu livrar o braço mais próximo do sofá e estendê-lo para debaixo do mesmo, sentindo o corpo de sua arma na ponta de seus dedos - ainda que fosse incapaz de envolvê-lo com sua mão para puxá-lo. Nisto, o lenço voltara a comprimir-se-lhe contra o rosto. Perder, era àquela hora uma mera questão de tempo ou de perspectiva. Num último esforço, imbuíra-se no sacrifício de não respirar e estender um pouco mais o braço – mas, no desespero, o melhor que Álvaro fizera, fora empurrar, para ainda mais longe de si o cabo de madeira - ao ponto de deixa-lo, de vez, definitivamente fora de seu alcance.
Suas forças se esvaíam.
Sua resistência findara-se.
Inspirou o líquido do lenço e sentiu o ardor da química invadir-lhe triunfantemente o cérebro.
Dia 5. Ou 4.
Álvaro acordou com a brisa que suavemente entrava pelo recém aberto buraco da parede. Acordou com falta de ar, inspirando pesadamente. Conservava-se deitado ao chão, no mesmo lugar para onde rastejara do tal buraco, quinze minutos antes. No mesmo lugar onde dormira.
E onde sonhara que fora atacado.
Sua cabeça doía, seus dedos ainda ardiam por ter ficado ao parapeito pendurado. Não era noite – como ele sonhara - e ninguém havia invadido o seu lar além de Sílvio e do porteiro meia hora atrás. Olhando ao redor de si, deparara-se logo de primeira com sua “arma”, embaixo do sofá.
Pegou-a.
Levantou-se, ainda um tanto quanto desnorteado, e fora, cambaleante, para o quarto.
Lá, finalmente, o encontrou.
O homem que o conhecia “muito bem”.
O suspeito, de barba por fazer, todo amarrotado, olhar assustado e armado com uma ridícula lança artesanal estava finalmente diante dele. Imerso em seu próprio devaneio lúgubre, Álvaro não via um espelho há dias, e agora, frente a um, tentava constrangidamente entender como aquele sujeito quase irreconhecível havia, enfim, chegado àquele tão alienante estágio de deploração. De todas as pessoas que se aproximaram de Álvaro nos últimos dias, nenhuma chegara tão perto, e nenhuma, de fato, o conhecia tão bem. Ele o havia seqüestrado, sim, e o guardara daquela forma tão bem dentro de seu próprio cativeiro, que ninguém até então poderia, em sã consciência desconfiar de tamanha engenhosidade. Qualquer outra possibilidade para seu súbito sumiço, se contada, faria mais sentido. Nada justificaria, convincentemente, os verdadeiros fatos. Sua desvairada amência, havia, legitimamente ultrapassado, todos os limites da razão. Como reagiria, por exemplo, um policial diante daquela história? Ou um juiz? Pior: se virasse aquele patético disparate uma pomposa notícia num jornal? Como seus colegas a leriam?
Ninguém teria, sobre si a menor dúvida... Tratariam-no como a um louco; um louco que com eles normalmente convivia, sem que ninguém dele genuinamente desconfiasse.
“Ele parecia tão saudável”, diriam.
Mais: o que pensaria seu pai? Por menos predicados que ele tivesse, nunca ninguém acreditaria que teria ele chegado tão longe. Nenhuma surra, nenhum castigo, nem uma ameaça ou intimidação resolveria. Era louco e pronto. Aos demais, restaria somente o arrependimento de o tê-lo criado e a terrível sensação de falha, por não o terem, antes, daquele modo, diagnosticado.
Sentia-se, num rompante quase eufórico, por ter, pelo menos uma vez, na vida, uma certeza inconteste, um abrangentemente irrecuperável e monumental fracasso. Um fracasso completo. Um erro. Uma pífia experiência mal-sucedida. Um simples e insignificante nada.
Mas, por que precisava o mundo saber?
Não... Nem todos os loucos precisavam ser ao mundo revelados... Nem todos os doidos, todos os dementes, todos os desajustados precisavam carregar à testa o seu estigma. Teria de haver um jeito de ocultar sua insânia. Teria de haver um jeito de reverter seu lunático surto.
Se em meio a uma tão hiperbólica crise psicótica, já havia conseguido Álvaro manter de pé uma farsa tão crivelmente espetacular, ele só precisaria dar continuidade a ela, brindando-na com um um desfecho coerente.
Até porque nada seria mais difícil que convencer alguém, de que ele havia simplesmente se trancado em casa com medo de um pretenso seqüestro, a si quimericamente anunciado, ao termo de uma risível leitura de mão.
Quem acreditaria que por causa de uma bobagem como aquela, tinha ele chegado ao ponto de pendurar-se à janela para evitar o Sílvio - logo o Sílvio, que nada de mal nunca lhe fizera!
A solução resumir-se-ia no fato de que ele fôra mesmo seqüestrado, e conseguira, heroicamente escapar, dias depois, do cativeiro. Afinal, ainda usava ele a roupa do primeiro dia e seu aspecto – tenebroso -, indiscutivelmente condizia com o que ele desejava contar.
Pegou uma pilha de jornais e de revistas antigas. Tesoura, cola e uma pinça. Sentou-se à mesa de jantar com alegria, e pôs-se a compor uma fantasiosa carta de seqüestro endereçada, diretamente, ao pai. Recortou várias letras de tamanhos diferentes, colou-os em uma folha A4 com a pinça – cuidando para que não houvesse nenhuma impressão digital sua ao material -, e respirara.
Estava tudo acabado.
Agora, só lhe restava postar a carta e sumir para algum lugar bem longe, para depois ressurgir à sua boa e velha vida, intrepidamente são e salvo. Para isto, teria de sair do prédio sem ser visto pelas câmeras de segurança do edifício.
“À noite vai ser mais fácil”; Álvaro pensou.
Àquela hora, só restava esperar.
NOITE
Com sua inseparável lança improvisada, Álvaro desceu passo a passo as escadas. Não havia àquele ponto do prédio nenhuma câmera – ao menos que ele soubesse. Sua intuição dizia que não era chegada ainda a hora de abandonar sua arma – talvez, a prova mais irrefutavelmente descabida, porém, igualmente cabal de toda aquela avariada loucura que aos últimos dias o tão acerbamente acometera.
Chegando à garagem, que ocupava não só a base, mas, sobretudo, circundava o corpo do prédio, dirigiu-se pressurosamente aos fundos, driblando, assim, as câmeras, que ele já sabia, àquele local, onde estavam. Na parte de trás do condomínio, o muro que delimitava o terreno tinha uma parte um pouco mais baixa. Subindo em um dos carros estacionados teria condições de pular o muro e cair ao fundo de uma vila, cuja entrada ficava discretamente à rua de trás, do outro lado do quarteirão.
Era a saída perfeita.
Mas, acima de Álvaro, apontando justamente para o muro, havia uma câmera.
A última câmera.
Porém, antes que pudesse a mesma sagrar-se como um intransponível obstáculo, sua prévia intuição se justificara instantaneamente :
A “lança”!
Erguendo-a com cuidado, Álvaro desconectou tranqüilammente a câmera, puxando um fio com a parte cega da faca, sem, entretanto, o cortar.
Sua aventura, finalmente, terminava...
Entre o sumiço da imagem no monitor da portaria, e a paulatina chegada do porteiro para averiguar o ocorrido, Álvaro subiu no carro, pulou o muro, e saiu, desenfreadamente, pela erma rua de trás.
Estava, enfim, livre.
Dia 1.
Álvaro Tenente acordou às 6 da manhã. Preparou e tomou seu café. Fez a barba. Tomou banho. Se arrumou e saiu para o trabalho.
Exatamente como fazia todos os dias, desde que havia chegado, solitariamente, à cidade grande.
Porém, no caminho para o escritório, que ficava numa continuamente longa e ruidosa via, não muito próxima da que ele morava, algo um tanto quanto diferente do usual se dera.
A visão inesperada de uma mulher - mais especificamente de uma quiromante -, que ele nunca havia, até então, notado - pelo menos não naquele lugar, ou naquela hora -, chamara-lhe, sem qualquer razão conscientemente plausível, subitamente, a atenção.
Parada, o olhar fixo e misterioso à espera de qualquer desavisado transeunte que dela se aproximasse, quando Álvaro se dera conta, não restava àquela esquina estranhamente vazia, outra possível “vítima” senão ele.
- Era só o que faltava... – lembrava de ter consigo mesmo, a respeito daquele tolo - ainda que provável e inevitável - estorvo, instintivamente praguejado.
Dentre as várias táticas imagináveis que lhe surgiram velozmente à cabeça, no intuito de evitar o invasivo assédio daquela mística e arrebatadora figura, que mesmo muda, o indiretamente acossava, Álvaro optara, previsivelmente, pela mais simples: não encará-la frente a frente e seguir adiante, aparentando surpresa se abordado, e argumentando estar atrasado, caso ela insistisse em algo.
Até porque, nunca fora ele, um homem de crendices...
Mas, ele deve ter provavelmente sido a mais ingênua presa daquela tão alicientemente sibilina e hipnótica mulher, entre todas as que já havia feito ela, certamente, àquele dia - tanto que bastou que ela perscrutasse-no, profundamente, com seus lúgubres e sombrios olhos impermeáveis e repletos de um raro e igualmente esfíngico e trevoso magnetismo, para que sem qualquer dificuldade, conseguisse a mesma, num gesto fugazmente lépido, bloquear-lhe, sem exímias delongas, o trajeto.
A mão esquerda, que se erguera ostentando o relógio, acabara servindo muita mais como isca para a predadora, que como um premeditadamente bem-sucedido pretexto para fuga, já que foi justo aquela mão, que segundos depois se encontrava, como um livro aberto, totalmente nua aos olhos dela.
“Perco menos tempo deixando, que discutindo”, conformava-se entediadamente Álvaro, aceitando, enfim, sem grande pesar, a tão tímida e célere derrota.
No entanto, a mulher parecia não ter pressa...
Estudando minuciosamente todo aquele labiríntico cruzar de múltiplas linhas manuais, uma ou outra expressão tensa – que a Álvaro, obviamente não dizia nada -, ao rosto da pretensa pitonisa, volta e meia, brotava.
- Você teve uma doença séria quando pequeno. – ela então, após um certo tempo, proferira. – Uma doença respiratória... Não foi?
- Sim, eu tive bronquite asmática. – limitara-se a responder Álvaro, já isento da cerimoniosa obrigação de insidiar o crescente enfado que toda aquela tão inusitadamente patética situação lhe causava.
Até, que num dado momento, ainda sem abandonar aquela mão que ela mantinha cada vez mais firmemente presa às suas, a mulher erguera seus ineroxáveis e mediterrâneos olhos, para logo em seguida sentenciar:
- Você será seqüestrado.
Instantaneamente, Álvaro empalidecera.
O que era um simples contratempo a caminho do trabalho começava a dar indícios de se ter repentinamente transformado, numa torva brincadeira de mau gosto.
- Sequestrado? – um tanto trêmulo, Álvaro, a hesitantemente indagara. - Como assim?
- É o que eu vejo escrito aqui.
Não, não podia aquela mulher estar dizendo a verdade; apelava, então, Álvaro, intimimamente à sua assolada razão; ela sequer o conhecia; não podia ele dar crédito a qualquer solerte feiticeira, que por ventura consigo cruzasse, e sobre si, fantasistas nescidades inventasse...
Afinal, era só uma quiromante; uma quiromante de rua em busca de dinheiro fácil a quem aprazia, sobretudo, impressionar...
- Mas por que? – ele, no entanto, incessantemente, atarantava-se - era, incrível como aquele ridículo ímpeto de favor, fazia-se mais forte que ele – Mas por quem?
- Por alguém que você conhece... – a mulher, lançando-lhe um vítreo olhar cruamente frio, sinistramente replicara. - Alguém que você conhece muito bem.
Para uma brincadeira, aquilo já tinha, sem dúvida alguma ido, longe demais. Puxara de volta, com uma certa aspereza, aquela mão das dela, e voltara ao seu caminho sem, no entanto, conseguir, naturalmente tirar os olhos, dos daquela tão soturnamente estuosa e fádica mulher, a quem não pagara, tampouco outra coisa em troca dera, por aquela tão nefanda e atordoante informação.
Sim, surpreendera-lhe - e muito -, em meio a tudo aquilo, o fato de não ter sido cobrado pelo serviço, já que era disso que se tratava o ofício da andarilha cigana.
Mas a mulher nada mais fazia, senão encara-lo demoradamente enquanto ele se afastava, sem sair daquela personagem que tão aflita se mostrava, com o funesto presságio que ela própria havia acabado de vaticinar.
Estaria ele realmente correndo algum tipo de perigo e toda aquela dantesca cena não passava, na verdade, de um nítido alerta cósmico para a sua reles pessoa – um alerta, tão horrendamente assustador que chegara a afetar até mesmo a sua eventual e desconhecida mensageira?
Não, não... Não haveria de ser nada...
- Que bela maneira de começar o dia! – atravessando a rua, Álvaro, ainda pensara.
Contudo, outra coisa esquisita acontecera – mais especificamente enquanto mantinha-se Álvaro preso às suas mais que aterradoramente incoerentes reflexões.
Um homem o olhava.
Um homem de aparência um tanto suspeita, a quem ele definitivamente não conhecia, inexplicavelmente parado ao outro lado da rua, assistia-o, atentamente. Na verdade, o homem usava óculos escuros, e portanto, o “assistia-o atentamente” era contestável – talvez um exagero amedrontado de quem ainda temia, de certo modo, as grandes cidades, ou mesmo um fruto da maligna sugestão, pelo mau presságio da quiromante, em sua cabeça, instintivamente provocada.
- Não há o que temer... – Álvaro, a si mesmo, reiteradamente repetia, ao passo que seguia, numa fictícia e calculada calma, aquele seu tão habitualmente cotidiano e imutável percurso.
No entanto, outro tipo estranho aparecera.
Também de óculos escuros, caminhando decididamente e sem se ater aparentemente a nada, o homem – de estatura singularmente elevada -, vinha, indubitavelmente na sua direção. Álvaro sentiu-se cercado. E se o primeiro homem houvesse atravessado a rua? Não, não teria ele opção. Por um segundo, ainda lhe passara à cabeça virar-se para conferir, mas, raciocinando rápido, concluíra que se um deles tivesse mais chance de agir contra si, faria isto, certamente, de surpresa, e obviamente seria o que agora já se encontrava, de si, a uns 4 metros de distância. A melhor fuga seria, com toda a certeza voltar, ao sólito caminho por onde comumente viera. Para isto, diminuíu consideravelmente o próprio passo - a tática, por pior que pudesse parecer, era deixar seu algoz aproximar-se o máximo possível... E quando o mesmo, enfim, por ele lentamente passara, Álvaro arremessara-lhe, violentamente e sem titubear, a grossa pasta de trabalho em direção ao rosto, acertando-o e retardando-o, enquanto disparava na direção oposta, ao passo que o homem, petrificado, não atrás de si correra. A quiromante – a fatídica prenunciadora de tudo aquilo -, encontrava-se ainda parada ao mesmo ponto; o primeiro homem – o que o atentamente assitia à calçada oposta -, também não se encontrava, para o seu momentâneo júbilo, em seu encalço -, embora nem mais soubesse Álvaro se permanecia o mesmo ao quadro, como há 5 segundos atrás, pois olhar para trás, ou para o lado, não fazia mais parte, àquela altura dos fatos, de seu imprudente plano.
Álvaro precisava correr. Correr muito, e desesperadamente, para chegar logo em seu prédio em segurança.
E assim o fez.
Passando pela portaria, suado, arfante, o terno um pouco torto e inevitavelmente amarfanhado, os cabelos revoltos e sem a costumeira pasta de trabalho, Álvaro acenou monocordiamente ao porteiro, fingindo naturalidade. Entrou no elevador e permaneceu olhando fixamente para frente, prendendo dificultosamente a respiração cansada, ciente de que a câmera de segurança do teto o observava. “É possível controlar todo o itinerário de um indivíduo”, arrematou.
Saltou em seu andar, entrou correndo no apartamento e bateu exauridamente a porta, descansando, conseqüentemente, seu fatigado corpo nela.
Estava, felizmente livre, do imane mundo externo.
O alívio imediato, porém, foi imediatamente assaltado pela idéia de que, se realmente alguém estivesse planejando seu seqüestro e o circuito de segurança do prédio fosse parte relevante em tudo aquilo, qualquer pessoa poderia invadir-lhe o lar - principalmente na sua ausência.
E, com o barulho desmedido que fez ao fechar a porta, se alguém estivesse, àquela hora, devidamente em seu apartamento escondido, o mesmo já estaria inteiramente a par de sua presença.
Uma onda de pavor que trespassava-lhe vagarosamente a medula, fora se pouco a pouco alastrando por todos os seus outros gélidos e paralisados membros.
Precisava averiguar se estava realmente só.
À esquerda da entrada, havia a cozinha. Divisando uma distância hipoteticamente segura, Álvaro deu um passo, que pôde prontamente colocar, como ele premeditara, toda ela em seu largo campo de visão.
Nada, nem ninguém, ali.
A “arma” mais próxima que Álvaro poderia lançar mão àquele momento, era um jarro de vidro grande e pesado, que nunca abrigara plantas de qualquer tipo, e servira, até então, como mero objeto de decoração, logo à entrada da sala. “Armado”, Álvaro invadiu a mesma, preocupando-se em fazer o mínimo de ruído possível. Como na cozinha, para a sua alegria aflita, nenhuma alma viva.
Faltava apenas o banheiro e seu próprio quarto para terminar, com sucesso, aquela temerária “campanha de reconquista”.
De longe mesmo, pudera Álvaro constatar que ambas as portas estavam abertas - exatamente conforme ele havia deixado. O que no fundo não significava nada – pois poderia ser aquilo muito bem parte da intrincada e bem urdida estratégia inimiga, para, quando ele menos esperasse, indefensavelmente, atacá-lo. Encostado à parede que fazia frente ao banheiro, agarrado ao jarro, Álvaro foi caminhando de lado até ter uma vista completa do suspeito cômodo.
Vazio.
Mais um passo para a direita, e estava no quarto.
Ninguém também por lá.
Seu território estava, sem sombra de dúvida, tranqüilo. Qualquer movimento agora, teria de vir, necessariamente de fora.
Retornou o jarro a seu posto.
E pensara, mais uma vez, que tudo aquilo não passava de um tolo exagero de sua parte...
- Quem haveria de querer seqüestrar um zé-ninguém como eu... – ele, de si mesmo, ria.
Entretanto, mal vira-se prestes a vislumbrar um ínfimo instante de relativa tranqüilidade que fosse em meio a todo aquele pandemônio de sentidos no qual adernado estava, sentira Álvaro um brusco choque atingi-lo à altura do peito. O choque, contínuo, emitia um som abafado e parecia estranhamente vir de dentro dele mesmo, só parando alguns segundos depois, quando Álvaro, enfim, enfiou a mão no bolso do terno, e jogou no sofá seu velho aparelho celular que irritantemente vibrava e tocava ao mesmo tempo.
O celular tocara muitas vezes.
Insistente e ininterruptamente.
Até que parou.
Encarando-o de longe, mais uma vez Álvaro quase sorrira ao constatar, que havia, sim, quase morrido do coração, por ter simplesmente recebido um mero telefonema.
“Será que é pra tanto?”, ele, outra vez, questionava-se.
O celular, contudo, voltara a tocar.
Chamada não identificada.
Álvaro, logicamente, não atendera.
Algumas horas mais tarde, depois de várias chamadas não atendidas e de inúmeras mensagens de texto não respondidas; quando um provável atraso no escritório começava a se inevitavelmente configurar como uma inexplicada falta, foi a vez do telefone fixo, altissonantemente tocar.
A secretária eletrônica atendera.
“Você ligou para a casa de Álvaro Tenente. No momento, não posso atender. Após o sinal, deixe sua mensagem que retornarei assim que puder.”
BIIIIIIIIIIIIIIP
- Álvaro? Álvaro? Aqui é o Sílvio, do escritório. Eu to ligando pro seu celular, mas não to conseguindo te encontrar. O pessoal aqui tá preocupado, você não apareceu, não avisou nada... Quando ouvir essa mensagem, entra em contato com alguém daqui, por favor, ta bom? Abraço.
Todavia, como se era de esperar, nem Sílvio, nem o escritório, receberam nenhum telefonema ou informação sobre o desconhecido paradeiro de Álvaro Tenente ao longo de todo aquele dia.
Dia 2.
Desde que chegara à cidade grande, Álvaro percebera que vizinhos, apesar de geograficamente mais próximos que no interior, não poderiam pessoalmente viver mais distantes.
Tanto que ele próprio, nunca soubera o nome de nenhum dos seus.
Cada andar de seu prédio continha quatro apartamentos. Álvaro morava no 501. No 502, uma mulher, entre 30 e 40 anos presumíveis, sozinha, não feia, mas, tampouco bonita, séria, com um certo quê de divorciada. O 503 abrigava um casal de idosos, que apesar de simpáticos, pouco de casa saíam. E no 504, um tipo um tanto quanto enigmático, que, felizmente, Álvaro nunca conhecera muito bem.
Vistas do corredor, as portas social e de serviço ficavam lado a lado. De dentro, eram divididas por uma parede que separava o hall de entrada da cozinha. Mantendo-se entre a sala e a cozinha, Álvaro estaria sempre ao alcance de água e comida, além de objetos da cozinha que porventura pudessem ser por si usados com mais eficácia que o jarro de vidro. O modesto banheiro de empregada, que sustentava apenas uma privada, um chuveiro e uma pia, ficava mais próximo do corredor, elevador e vão central do edifício. Lá, Álvaro poderia suprir suas necessidades sem perder os difusos sons da diversificada movimentação predial.
Estaria sempre a postos contra quem quer que tentasse entrar.
- A não ser que entrasse o invasor pela janela do quarto... – ele, por um segundo, angustiadamente, temera.
Mas, sendo um apartamento no quinto andar, levar em conta tal possibilidade, era algo que, sim, beirava a insânia.
Álvaro não dormira a madrugada inteira. Em determinada hora, pensou em tomar um banho, mas se estivesse de alguma maneira tendo seus movimentos observados, seria num momento de descuido como aquele que o ataque seguramente ocorreria. Seu celular continuara tocando até finalmente descarregar a bateria, e a secretária eletrônica acusava nada mais nada menos que 19 mensagens gravadas.
E fora ali, sozinho, durante aquele longo e aflitivo período, que Álvaro percebera, detalhadamente alguns padrões - um tanto quanto relevantes, era verdade - , do rotineiro balé dos vizinhos. A mulher do 502 gostava de usar saltos e trabalhava no horário comercial. Os idosos, como ele já de antemão desconfiava, assistiam, o dia inteiro aos mais discrepantes e variados programas de televisão. E o morador do 504 – o enigmático, como ele mesmo prefacialmente classificara - saíra àquele dia às 9 da noite e só retornara às 4 da manhã.
“Ou trabalha na noite, ou é algum profissional free lancer, não tendo um horário definido”, Álvaro devaneava.
A moradora do 502 e o casal do 503 faziam assinatura de algum jornal, que era posto embaixo de seus capachos às 4:30.
Nenhum parecia acordar cedo.
De pé, à base de muito café, o dia ia transcorrendo para Álvaro conseqüentemente sob controle. Uma vigésima ligação lotara as mensagens da secretária.
- Álvaro? Teu pai, atende aí! Atende essa porra, caralho! Olha só, eu recebi um telefonema lá do negócio onde você trabalha, dizendo que você não foi. O que é que houve? Onde é que você se meteu?? Vê se não vai me arrumar problema agora, hein?! Olha lá! Eu to esperando você me retornar e me explicar que palhaçada é essa que tu tá aprontando, senão eu chamo a polícia!
Curioso com o furente e autoritário tom daquela voz, que volta e meia atormentara a sua adolescência – não só quando Álvaro fazia alguma besteira, mas, sobretudo, porque achava por bem aquele pai dirigir-se àquele filho sempre de modo ríspido -, soava agora como um inútil e longínquo grito de desespero, que perto dos reais problemas que momentaneamente enfrentava Álvaro, nem chegava a interromper a ação que o motivava - que era a de simplesmente ir à geladeira pegar uma maçã, no frágil intuito de enganar, temporariamente a fome.
Geladeira aberta, maçã na mão, enumerando as coisas que se lhe ostentavam às prateleiras, Álvaro calculou o quanto de comida seria necessária para supri-lo àquela hora. Preferiu, portanto, deixar a maçã para mais tarde. A atividade que voltava a se fazer ao corredor, parecia, evidentemente, dada a gravidade daquela tão riscosa situação, para si, muito mais importante. Eram 15:47. A engrenagem do elevador freou, e a porta se abriu, justamente, ao seu andar.
Passos.
Quem seria?
Um visitante, sem dúvida.
A mulher do 502 não estava em casa. O casal do 503 poderia ter filhos ou até mesmo netos. E o do 504 devia, como todos, ter amigos - embora não parecesse gostar muito de gente.
Mas os passos, por sua vez, pareciam destinar-se ao 501.
E pareciam ter parado cuidadosamente à sua porta, como se não quisessem chamar de modo algum a atenção. Ninguém bateu, ninguém tocou a campainha, tampouco havia interfonado antes. E agora, estava ali, parado. Por um momento, ouvira o visitante mexer às roupas. Estaria ele – ou ela, nenhuma possibilidade podia ser descartada -, procurando em seus bolsos alguma chave mestra, ou mesmo algum tipo de ferramenta útil para abrir portas? Ou talvez arrumando o que quer que houvesse trazido, caso estivesse disfarçado de entregador, enquanto escondia atrás da suposta encomenda uma arma?
Sem nenhum movimento brusco, Álvaro abriu lentamente a gaveta dos talheres, e com a ponta dos dedos pegou uma faca de cozinha.
Passos novamente, agora se afastando.
Campainha do outro lado. 504. A porta se abriu, um diálogo amigável teve o seu ínicio, até que adentraram ao apartamento enquanto a porta se fechava, encerrando, de vez, seu limitado acesso ao conteúdo da conversa. Alívio. A faca de cozinha aparentava ser uma boa idéia – afinal, era melhor conserva-la à mão que presa na barulhenta gaveta dos talheres.
A visita vizinha deixou a área às 17:24.
Após aquilo, nada de novo no front.
Dia 3.
Havia uma faxineira, que trabalhava provavelmente no 503, que Álvaro só descobrira então – gerando, em si, como se era de esperar, um leve susto - pela manhã. Para evitar esperdiçados sobressaltos do tipo, achou Álvaro por bem anotar todos os itinerários de seus vizinhos, para poder assim identificar o que fugisse aos padrões estabelecidos, e mais ainda para ter consigo um verídico registro de confiança anotado, pois não sabia quanto tempo sua mente permaneceria naquele ritmo em estado de alerta. Sentado à mesa de jantar, com a faca ao lado, anotou os números dos apartamentos em uma folha de papel, correlacionando ao lado os habituais horários de cada um.
Mas algo que ele realmente não esperava acontecera.
O relógio marcava 13:20, quando seu interfone tocou. Álvaro imediatamente se agarrou à faca e com a respiração quase suspensa, esperou. O interfone insistia. Insistia muito. Quase que como na certeza de que estava ele em casa.
Até que parou.
Álvaro mais uma vez se pôs a pensar em tudo o que havia decorrido nos últimos dias, em mais uma vã tentativa de levantar suspeitos, mas não conseguia, como sempre, ir muito além do porteiro - que dependendo do ponto de vista considerado, poderia ser, sim, alguém que ele conhecia “muito bem”, apesar de não saber sequer o seu nome.
E eis que o elevador aporta novamente no quinto andar, e sapatos se dirigem sem nenhuma dúvida para o 501.
Toque de campainha.
Álvaro, uma pilha de nervos, com a faca em punho, se postou aterradamente em frente à porta, à alguma distância que não denunciasse a sua presença, e ali ficou. Tesamente preparado para avançar, assim que o criminoso da fechadura se de vez livrasse.
Mas o criminoso fingia esperar ser atendido convencionalmente, como se não tivesse nada prologalmente preparado. Ele esperou, tocou a campainha de novo, e continuou a esperar. Álvaro ouviu os movimentos das suas vestes, como se ele manuseasse ferramentas aos bolsos, seguidos de sons eletrônicos, como um código de acesso. Imediatamente, seu telefone fixo passou a tocar, simultaneamente às últimas esperanças da campainha. Álvaro, que neste momento percebia suas pernas oscilantes, enquanto empapava toda a roupa de suor, começou a se dar conta de que a faca, por maior que fosse, era um instrumento de curta distância. Teria que estar muito perto de seu algoz para brandir um ataque de efeito, já que estaria também o adversário armado, dificultando, obviamente, todo o resto.
Mas era naquele momento, tudo o que tinha.
O telefone e a campainha cessaram. Passos percorreram o caminho do elevador outra vez. As engrenagens cantaram que ele estava indo embora. Mas Álvaro ainda permaneceu muito tempo à mesma posição, caso tudo não passasse de um blefe. Após certificar-se de que o perigo não o mais ali rondava, dirigiu-se silenciosamente à área de serviço, onde, de posse de uma vassoura da qual separara apenas o cabo, e de um rolo de fita isolante, transformara a sua humilde faca numa lança.
Uma de suas janelas dava para outros prédios. Nenhum muito próximo, era verdade. Mas lhe ocorreu por um instante que o pormenorizado monitoramento de suas atividades poderia estar sendo feito por um deles. Daí talvez viesse a certeza do visitante da hora do almoço – hora em que Álvaro se achava, ordinariamente, em casa. Pensou em fechar as cortinas, porém, tal atitude denunciaria ao observador que já estava ele a par de toda a operação. Melhor seria simplesmente desaparecer do apartamento, para todos os efeitos. Munido de seu equipamento de longo alcance, não lhe restava outra alternativa senão locomover-se, a partir daquela hora, engatinhando ou rastejando ao chão, objetivando nunca alçar-se acima do periculoso limite da base da janela. Dali em diante, viveria na altura da tábua colada com fita adesiva na parede interna do apartamento, para tapar o buraco feito para o aparelho de ar condicionado – nunca instalado.
E foi justamente ali, entre a parede com a tábua e a lateral do sofá, que elegera Álvaro o seu posto. Estava fora do campo de visão de quem invadisse pela porta de entrada; e se entrassem pela janela do quarto, ao entrar na sala não teriam também como vê-lo. Havia ainda a janela da sala - Álvaro, por sua vez, em pouco tempo notara -, mas, caso escolhesse o invasor entrar também por ali, com ele se ia à mesma hora deparar – com ele e com sua afiada lança, pronta a perfurar quem quer que consigo se eventualmente atracasse. A lista de horários dos vizinhos, ficava embaixo do sofá, onde estaria à mão a qualquer momento que um barulho, ao andar, claramente ecoasse.
Estava pronto para qualquer combate.
Dia 5. Ou 4.
Álvaro não dormia há 3 ou 4 noites. De vez em quando, cochilava por alguns minutos meio que sem querer mas, ao menor som provocado, voltava a si muito mais desperto e próvido que antes. Em seu canto, o dia começara, para o seu intermitente alívio, sem grandes novidades.
Mas às 13:14, o interfone voltou a tocar.
Imediatamente Álvaro pegou sua arma, foi em direção à cozinha e apontou-a ao interfone, como se ele pudesse eficientemente calar o mesmo, com o escomunal peso daquela tão baldia e infrutífera ameaça.
O interfone parou.
Álvaro suspirara por um segundo - como se um mero suspiro lhe parecesse um prêmio.
Porém, um ruído bastante familiar interrompera aquele breve instante de paz.
Eram as engrenagens do elevador.
Como Álvaro temia, o elevador estacionou ao quinto andar. Quatro pés caminhavam, conversando rumo ao 501. Encostado na parede que divisava o término do hall e o começo da sala, Álvaro conseguia perfeitamente ouvi-los por estar perto da porta. Percebeu também, que naquela posição, quando os mesmos, enfim, entrassem não teriam uma boa visão sua até que fosse tarde demais. As duas vozes soavam-lhe conhecidas. A campainha grita. Não dava para captar com exatidão o que diziam, mas pôde ouvir seu nome citado mais de uma vez. A campainha ressona novamente. Uma voz das vozes se sobressai, agora alta:
“Álvaro?”
Provavelmente era o mesmo homem que tinha certeza de sua presença.
“É o Sílvio. Você tá aí?”
Sílvio!!! Álvaro não diria que conhece o Sílvio “muito” bem, mas o conhecia, sem dúvida, mais que superficialmente. Também não poderia imaginar mais ninguém de seu seleto grupo de amigos que pudesse arquitetar algo contra ele. Um colega de trabalho é o mais humanamente provável. Sílvio, era com certeza a pessoa mais próxima de Álvaro no escritório, e por muito tempo em um escritório conhecem-se idiossincrasias uns dos outros, que podem ser naturalmente interpretadas por “conhecer muito bem”. Sílvio fazia definitivamente parte do plano – mais: era ele certamente o elo que ligava os mentores a Álvaro devido ao fato de trabalharem juntos. Ele era a pessoa que Álvaro conhecia “muito bem”.
Desvendando, afinal, o prólogo de todo aquele tão intrincado mistério, Álvaro teria se sentido até mesmo feliz, não fossem as insistentes batidas na porta, mais a campainha, mais o seu nome evocado em voz alta, em meio à uma ininteligível conversa, que ele acreditara, em dado momento, ouvir entre os comparsas.
De repente, entrara em cena um som metálico.
Penduricalhos de metal chocando-se sonorosamente uns aos outros.
Seriam chaves?
Um dos penduricalhos foi introduzido na fechadura, enquanto os outros faziam somente côro. Um imenso molho de chaves, era o que Álvaro presumira. Acompanhado pelo porteiro, que por alguma razão qualquer, tinha uma cópia da chave de sua casa - ou mesmo uma chave mestra, pois a porta respondeu começando a se destrancar -, Sílvio estaria, em poucos segundos diante de si. Álvaro precisava se esconder. Ou devia matá-los em legítima defesa? Sem muito raciocinar, Álvaro disparara, num impulso, em direção à janela, jogando sua arma pelo caminho em baixo do sofá. O destrancar da porta já ia para a segunda volta. Álvaro pôs seu corpo para fora do apartamento, e segurou-se bravamente ao parapeito da janela. Chegou a ver a porta se abrindo quando substituiu o parapeito da janela pela parte externa do buraco do ar condicionado.
Eles entraram.
Álvaro estava pendurado pelos dedos num pequeno buraco de formato quadrado na lisa parede externa do quinto andar de seu prédio. Pelo menos não fora visto; era o que o reconfortava. Sílvio e o porteiro devassavam o recinto, sempre chamando seu nome. O porteiro procurou na cozinha e na área de serviço. Sérgio, no banheiro e no quarto. Do lado de fora, Álvaro só conseguia ouvir seu nome sendo várias e várias vezes falado. Sílvio e o porteiro se reencontraram na sala, onde Sérgio indagou novamente o mesmo sobre quando fora Álvaro, ao prédio, visto pela última vez. O porteiro explicava que o tinha visto entrar, mas não havia o visto sair – da mesma forma que o porteiro da noite. Sem entender como podia ter aquilo acontecido, Sílvio pedira então para ver os registros do circuito interno de segurança, para ver se flagrava alguma imagem de Álvaro saíndo ou entrando no prédio.
- Alguma coisa muito séria deve ter acontecido. – Sílvio volta e meia conjecturava.
Antes de saírem do apartamento, no entanto, o porteiro, notando a janela escancarada da sala, achou por bem fechá-la, pois já que Álvaro não se encontrava e não se sabia quando retornaria, poderia em caso de chuva ser a mesma alagada, danificando, não só o chão de madeira, como também algum aparelho eletrônico.
Pendurado pelos dedos, Álvaro viu desesperadamente sua janela sendo fechada, e ele sendo, conseqüentemente trancado, do lado de fora do edifício.
As mãos começavam já a adormecer, exaustas de estarem aguentando todo o peso de seu corpo.
A tentativa de descansar uma mão e permancer segurando-se só com a outra, mostrou-se logo, como se era de esperar, não muito bem sucedida.
Afinal, era muito peso.
A situação – talvez a mais absurda, por si, até então vivida - surrealmente prolongava-se. Em mais alguns minutos, suas forças extenuar-se-iam.
Algo precisava ser feito, caso não quisesse ele, resignado, encarar, em alguns instantes, a morte.
Apesar dos braços imperiosamente combalidos, e da incredulidade que o continuamente assolava, a cada vez que se dava conta de onde e como estava, Álvaro reuniu num urro, as últimas forças em si restantes para erguer o corpo o máximo que podia. Conseguindo, um violento soco na tábua – que sangrara-lhe a mão direita -, seguiu-se, zunindo-a para dentro do apartamento, onde Álavro agarrou com o braço intruso a parede interna, colocando-se, rapidamente numa posição um tanto mais factível e favorável para agüentar o próprio peso.
Passou o outro braço para dentro do buraco.
Conseguiu erguer-se mais, empurrando o prédio com as pernas e puxando o apartamento com os braços.
Passara a cabeça.
Depois o tronco.
Por fim as pernas.
Estava de novo em casa.
Rastejando pelo chão, onde involuntariamente colhendo um merecido descanso, comemorava ainda a sorte de já terem os êmulos saído, aparentemente sem ouvir o estrondoso retumbar da tábua quebrando, Álvaro permaneceu estendido no chão por muito tempo, com os músculos do corpo incrivelmente enfraquecidos e o ritmo cardíaco incoercivelmente alucinado. A adrenalina baixava, o coração se desacelerava e uma prostração gradativa ia dominando tudo o que se achava ainda vivente em si. Ele sabia que se continuasse ali, iria necessariamente dormir.
Por isto, com muito esforço, levantou-se.
E foi à cozinha fazer mais um silencioso café.
Dia ?
No silêncio da madrugada, em seu posto no canto da sala, Álvaro lutava determinadamente contra o sono. Os olhos pesados, a respiração sôfrega, volta e meia despertava de si mesmo com a cabeça pendendo, lassamente em queda. Já havia tomado todos os estimulantes existentes na casa, mas o acúmulo daquelas três ou quatro estafantes noites passadas, somadas à aventura daquela tarde, foram a sentença de morte para a empedernida e implacável energia de Álvaro, que agora mal conseguia se mover. Sabia que não devia ceder, mas o sono o impiamente atacava, independente de sua vontade. A persistência em não dormir e a certeza de não estar dormindo já eram o próprio sonho num sono profundo.
Álvaro, enfim, rendera-se.
Deitado no chão, estava, deveras, entregue à própria sorte.
Não houve barulho de elevador, nem telefone, interfone ou campainha - muito menos vozes. Entretanto, pouco tempo depois de Álvaro inelutavelmente adormecer, a porta do apartamento foi mais uma vez destrancada, porém agora com muito mais acuidade e muito menos barulho – como se cada movimento feito, tivesse como único objetivo, não perturbar o profundo sono de Álvaro. Quatro pés adentraram cautelosamente o hall, fecharam a porta e tiraram os sapatos, ficando somente de meias. Cada um vestia um capuz, deixando somente os olhos à mostra. Caminharam em direção a Álvaro - um ficando próximo de seus pés, o outro de sua cabeça. O que se achava próximo à cabeça, pegou um lenço e um frasco, cujo líquido fora prontamente derramado ao lenço. Ao mesmo tempo, o outro homem apressou-se em imobilizar as pernas de Álvaro, ao passo que o primeiro segurou um de seus braços, prendendo em seguida o braço restante pressionando, contra ele, o joelho. Com a mão livre, lançou o lenço encharcado contra o nariz e a boca de Álvaro, que com o susto, já acordara lutando, porém totalmente dominado. Álvaro ainda conseguiu abrir a própria boca, e morder não só o lenço, mas também alguns dedos do agressor, fazendo com que este, por um segundo se afastasse. Surpreso com o golpe, este mesmo agressor cedeu um pouco a pressão que fazia até então com o joelho, permitindo que Álvaro pudesse livrar uma das mãos, que, todavia, foi logo presa pela mão ferida do algoz, fazendo com que Álvaro continuasse, deles, cativo – mesmo que naquela posição, não tivessem os atacantes as mãos livres para inebriá-lo com o lenço, que agora se encontrava ao chão. Álvaro se agitava o máximo que podia – seu intuito era dar o máximo de trabalho possível àqueles seqüestradores; num delírio, pensara que se conseguisse livrar deles a outra mão, poderia alcançar, com sucesso, sua arma embaixo do sofá. O criminoso refez o esquema, ajoelhando novamente sobre o braço de Álvaro, e pegando o lenço. Nesta movimentação, Álvaro conseguiu livrar o braço mais próximo do sofá e estendê-lo para debaixo do mesmo, sentindo o corpo de sua arma na ponta de seus dedos - ainda que fosse incapaz de envolvê-lo com sua mão para puxá-lo. Nisto, o lenço voltara a comprimir-se-lhe contra o rosto. Perder, era àquela hora uma mera questão de tempo ou de perspectiva. Num último esforço, imbuíra-se no sacrifício de não respirar e estender um pouco mais o braço – mas, no desespero, o melhor que Álvaro fizera, fora empurrar, para ainda mais longe de si o cabo de madeira - ao ponto de deixa-lo, de vez, definitivamente fora de seu alcance.
Suas forças se esvaíam.
Sua resistência findara-se.
Inspirou o líquido do lenço e sentiu o ardor da química invadir-lhe triunfantemente o cérebro.
Dia 5. Ou 4.
Álvaro acordou com a brisa que suavemente entrava pelo recém aberto buraco da parede. Acordou com falta de ar, inspirando pesadamente. Conservava-se deitado ao chão, no mesmo lugar para onde rastejara do tal buraco, quinze minutos antes. No mesmo lugar onde dormira.
E onde sonhara que fora atacado.
Sua cabeça doía, seus dedos ainda ardiam por ter ficado ao parapeito pendurado. Não era noite – como ele sonhara - e ninguém havia invadido o seu lar além de Sílvio e do porteiro meia hora atrás. Olhando ao redor de si, deparara-se logo de primeira com sua “arma”, embaixo do sofá.
Pegou-a.
Levantou-se, ainda um tanto quanto desnorteado, e fora, cambaleante, para o quarto.
Lá, finalmente, o encontrou.
O homem que o conhecia “muito bem”.
O suspeito, de barba por fazer, todo amarrotado, olhar assustado e armado com uma ridícula lança artesanal estava finalmente diante dele. Imerso em seu próprio devaneio lúgubre, Álvaro não via um espelho há dias, e agora, frente a um, tentava constrangidamente entender como aquele sujeito quase irreconhecível havia, enfim, chegado àquele tão alienante estágio de deploração. De todas as pessoas que se aproximaram de Álvaro nos últimos dias, nenhuma chegara tão perto, e nenhuma, de fato, o conhecia tão bem. Ele o havia seqüestrado, sim, e o guardara daquela forma tão bem dentro de seu próprio cativeiro, que ninguém até então poderia, em sã consciência desconfiar de tamanha engenhosidade. Qualquer outra possibilidade para seu súbito sumiço, se contada, faria mais sentido. Nada justificaria, convincentemente, os verdadeiros fatos. Sua desvairada amência, havia, legitimamente ultrapassado, todos os limites da razão. Como reagiria, por exemplo, um policial diante daquela história? Ou um juiz? Pior: se virasse aquele patético disparate uma pomposa notícia num jornal? Como seus colegas a leriam?
Ninguém teria, sobre si a menor dúvida... Tratariam-no como a um louco; um louco que com eles normalmente convivia, sem que ninguém dele genuinamente desconfiasse.
“Ele parecia tão saudável”, diriam.
Mais: o que pensaria seu pai? Por menos predicados que ele tivesse, nunca ninguém acreditaria que teria ele chegado tão longe. Nenhuma surra, nenhum castigo, nem uma ameaça ou intimidação resolveria. Era louco e pronto. Aos demais, restaria somente o arrependimento de o tê-lo criado e a terrível sensação de falha, por não o terem, antes, daquele modo, diagnosticado.
Sentia-se, num rompante quase eufórico, por ter, pelo menos uma vez, na vida, uma certeza inconteste, um abrangentemente irrecuperável e monumental fracasso. Um fracasso completo. Um erro. Uma pífia experiência mal-sucedida. Um simples e insignificante nada.
Mas, por que precisava o mundo saber?
Não... Nem todos os loucos precisavam ser ao mundo revelados... Nem todos os doidos, todos os dementes, todos os desajustados precisavam carregar à testa o seu estigma. Teria de haver um jeito de ocultar sua insânia. Teria de haver um jeito de reverter seu lunático surto.
Se em meio a uma tão hiperbólica crise psicótica, já havia conseguido Álvaro manter de pé uma farsa tão crivelmente espetacular, ele só precisaria dar continuidade a ela, brindando-na com um um desfecho coerente.
Até porque nada seria mais difícil que convencer alguém, de que ele havia simplesmente se trancado em casa com medo de um pretenso seqüestro, a si quimericamente anunciado, ao termo de uma risível leitura de mão.
Quem acreditaria que por causa de uma bobagem como aquela, tinha ele chegado ao ponto de pendurar-se à janela para evitar o Sílvio - logo o Sílvio, que nada de mal nunca lhe fizera!
A solução resumir-se-ia no fato de que ele fôra mesmo seqüestrado, e conseguira, heroicamente escapar, dias depois, do cativeiro. Afinal, ainda usava ele a roupa do primeiro dia e seu aspecto – tenebroso -, indiscutivelmente condizia com o que ele desejava contar.
Pegou uma pilha de jornais e de revistas antigas. Tesoura, cola e uma pinça. Sentou-se à mesa de jantar com alegria, e pôs-se a compor uma fantasiosa carta de seqüestro endereçada, diretamente, ao pai. Recortou várias letras de tamanhos diferentes, colou-os em uma folha A4 com a pinça – cuidando para que não houvesse nenhuma impressão digital sua ao material -, e respirara.
Estava tudo acabado.
Agora, só lhe restava postar a carta e sumir para algum lugar bem longe, para depois ressurgir à sua boa e velha vida, intrepidamente são e salvo. Para isto, teria de sair do prédio sem ser visto pelas câmeras de segurança do edifício.
“À noite vai ser mais fácil”; Álvaro pensou.
Àquela hora, só restava esperar.
NOITE
Com sua inseparável lança improvisada, Álvaro desceu passo a passo as escadas. Não havia àquele ponto do prédio nenhuma câmera – ao menos que ele soubesse. Sua intuição dizia que não era chegada ainda a hora de abandonar sua arma – talvez, a prova mais irrefutavelmente descabida, porém, igualmente cabal de toda aquela avariada loucura que aos últimos dias o tão acerbamente acometera.
Chegando à garagem, que ocupava não só a base, mas, sobretudo, circundava o corpo do prédio, dirigiu-se pressurosamente aos fundos, driblando, assim, as câmeras, que ele já sabia, àquele local, onde estavam. Na parte de trás do condomínio, o muro que delimitava o terreno tinha uma parte um pouco mais baixa. Subindo em um dos carros estacionados teria condições de pular o muro e cair ao fundo de uma vila, cuja entrada ficava discretamente à rua de trás, do outro lado do quarteirão.
Era a saída perfeita.
Mas, acima de Álvaro, apontando justamente para o muro, havia uma câmera.
A última câmera.
Porém, antes que pudesse a mesma sagrar-se como um intransponível obstáculo, sua prévia intuição se justificara instantaneamente :
A “lança”!
Erguendo-a com cuidado, Álvaro desconectou tranqüilammente a câmera, puxando um fio com a parte cega da faca, sem, entretanto, o cortar.
Sua aventura, finalmente, terminava...
Entre o sumiço da imagem no monitor da portaria, e a paulatina chegada do porteiro para averiguar o ocorrido, Álvaro subiu no carro, pulou o muro, e saiu, desenfreadamente, pela erma rua de trás.
Estava, enfim, livre.